Trincheira rebelde em Santa Catarina, uma das mais sacrificadas no Porto, na qual destaca em primeiro plano um soldado observando a posição inimiga com uma garrafa na mão.
O medo de que a revolução “caísse na rua” terá sido o motivo que levou os militares de Lisboa conjurados na revolta a não secundar de imediato o pronunciamento do Porto. A pressão popular, a agitação nos meios operários e nas ruas, o sentimento de remorso que se foi instalando nalguns dos militares conjurados, à medida que se foi conhecendo a dureza dos combates e o isolamento dos revoltosos no norte, ditariam o arranque do movimento em Lisboa. Nesse momento, no Porto, a situação era já de virtual derrota. Os revolucionários resistiram três dias na capital e, na noite do dia 9 de Fevereiro de 1927, um número indeterminado de marinheiros e civis foram fuzilados junto ao chafariz do Largo do Rato, após deporem as armas por falta de munições. Acabava de forma trágica e intimidatória a revolta contra a ditadura instalada nove meses antes e que os portugueses viveriam nos 47 anos seguintes.
A primeira tentativa consequente de derrube da ditadura militar instalada com o golpe de 28 de Maio de 1926 eclodiu no Porto na madrugada de 3 de Fevereiro de 1927. No plano traçado, os revoltosos, à frente dos quais se encontravam ''militares e civis republicanos cuja actividade política se tinha desenvolvido até ali fora da estrita vida partidária” , contavam com o levantamento das forças conjuradas em Lisboa e no resto do país nas doze horas seguintes, mas não aconteceu assim.
Esta revolução, como preferem chamar-lhe alguns dos intervenientes, fermentou no ambiente conspirativo generalizado que estava estendido a toda a oposição política ao governo da ditadura. Fortemente marcado pela participação de militares, o movimento que ganhava forma, já então identificado como o "reviralho”, tinha o apoio para esta acção de um leque alargado de forças políticas que ia desde o Partido Radical Democrático, Acção Republicana, Seara Nova, Esquerda Democrática ao sindicalismo revolucionário e ao anarquismo militante.
Esta amálgama de interesses tinha como objectivo comum o derrube da ditadura militar surgida com a sublevação do exército em 28 de Maio do ano anterior, que se estabelecera sem resistência do Governo do Partido Republicano Português (PRP), então no poder, e contara para o seu êxito “com a cumplicidade de todo o espectro político”, como sublinha Emídio Santana .
Os motivos para esta aliança táctica eram diferentes. Os republicanos constitucionais por se considerarem atraiçoados na expectativa de regeneração da República anunciada pela ditadura. A esquerda e os anarquistas por pressentirem a queda de todas as liberdades populares e verem cada vez mais eminente o perigo de fascismo. A escolha do Porto para o pronunciamento da revolta ficou a dever-se às medidas cautelares tomadas nos meses anteriores pelo Governo, transferindo das suas unidades ou colocando sob residência fixa muitos militares da guarnição de Lisboa considerados susceptíveis de aderir à Revolução .
O movimento, dirigido por um comité constituído por Sarmento Pimentel, Jaime Cortesão, Jaime de Morais, José Domingues dos Santos e Raúl Proença como elemento de ligação a Lisboa, propunha-se “restaurar o regime e a Constituição e formar um forte governo nacional composto por algumas das mais competentes e honradas figuras da República”. Não sendo um movimento apolítico, afirmava-se como um movimento “contra os políticos”, numa alusão aos políticos do PRP, cujas facções monopolizaram o poder desde a proclamação da República em 1910 até ao golpe de 28 de Maio de 1926.
A Revolta no Porto
A sublevação teve o apoio, a partir do próprio dia, de forças militares de Penafiel, Amarante, Valença, Santo Tirso e Guimarães, que se dirigiram para o Porto em reforço dos insurrectos. Ao mesmo tempo saíram a ocupar posições estratégicas unidades militares da Figueira da Foz e de Vila Real. No dia seguinte, a solidariedade estendeu-se a Vila Real de Santo António, Tavira e Faro. Já no dia 5, ocorreram tentativas de sublevação de forças militares em Setúbal, Barreiro, S. Julião da Barra, Queluz, Évora, Abrantes, Alijó e Valpaços. Com excepção das primeiras, todas as outras se foram rendendo nas horas seguintes às forças fiéis à ditadura militar. As unidades militares do Porto e de Vila Nova de Gaia, cuja maioria inicialmente se tinham declarado neutrais, à medida que o tempo passava e se foram concentrando tropas fiéis ao Governo nos arredores da cidade, tomaram o partido da ditadura, transformando o Porto de um bastião revolucionário numa cidade sitiada.
Anos mais tarde, Manuel Joaquim de Sousa, secretário-geral da CGT (Confederação Geral do Trabalho), comentaria criticamente a atitude do Comité Revolucionário do Norte face às unidades militares neutrais: “Ali [no Porto], os elementos das esquerdas principiam a revolução colocados logo na defensiva. Imprevidentes ou ingénuos os seus dirigentes contentaram-se com declarações de ‘neutralidade’ de gente que logo a seguir bombardeou a cidade, às ordens do Ministro da Guerra, e forçou a rendição sem condições” . O Ministro da Guerra, vindo de Lisboa com reforços, comandou a repressão ao movimento desde o final do primeiro dia.
A cidade foi bombardeada sem tréguas nos dias seguintes a partir da Serra do Pilar e do Monte da Virgem, provocando inúmeros incêndios na sua zona central. Resultaram destruídos vários edifícios públicos e foram fortemente atingidos alguns hotéis, bancos, cafés, casas comerciais e quartéis dos bombeiros. A resposta dos revoltosos castigou duramente Vila Nova de Gaia.
No interior da cidade as posições revolucionárias mantiveram-se inexpugnáveis nos dois primeiros dias. Mas o aumento do isolamento cada dia que passava, o bombardeamento sistemático, o estreitar do cerco, a escassez de mantimentos e munições, o número elevado de mortos e feridos, estes aspectos, agravados pela persistência no modelo de combate convencional, condicionador do papel dos civis, e somados à inacção de Lisboa, foram tornando visível o espectro da derrota próxima.
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Um dos emissários dos revoltosos é conduzido com os olhos vendados ao encontro com o Ministro Da Guerra, nas Devesas em Gaia (Foto do Arquivo Fotográfico de Lisboa). |
Neste ambiente, emissários dos revoltosos deslocaram-se do Porto ao quartel-general das forças governamentais instalado em Vila Nova de Gaia, no dia 5 de fevereiro, para negociar um armistício. Foi premonitória a foto dos três militares de olhos vendados entrando para o edifício onde conferenciaram com o Ministro da Defesa, que lhes reafirmou: “rendição total ou o bombardeamento da cidade até à destruição das posições rebeldes”. Perguntado pelos jornalistas por que não se rendiam os revoltosos, respondeu: “Porque não obedecem a um comando certo. Manda toda a gente e os civis coagem a tropa a não se entregar…” .
Os combates prolongaram-se mais dois dias, com as forças leais ao Governo reforçadas por tropas oriundas de Lisboa e de unidades militares do Norte do país. Com as atenções focadas em Lisboa, de onde chegavam notícias, falsas, de que o movimento finalmente arrancava, os revoltosos resistiram até 7 de Fevereiro à crescente agressividade das ofensivas lealistas que foram apertando o cerco à zona central da cidade, mas, à medida que as horas passavam e as munições se foram esgotando, foi aumentando o número dos que entendiam que a rendição era inevitável.
As forças em presença na “batalha” do Porto, a 7 de Fevereiro, foram calculadas em 1200 militares e outros tantos civis combatentes do lado dos revoltosos, destes “cerca de 300 foram armados, alguns deles cêgêtistas e sindicalistas revolucionários” , e em 4000 os efectivos governamentais que sitiavam a cidade. O receio declarado dos militares “reviralhistas” de que a revolução “caísse na rua” explica os cuidados na hora de distribuir armas a civis, como evidencia José da Silva, nas suas “Memórias” : “um grupo de 200 operários, concentrados na estação de Campanhã, esperou em vão durante horas que lhes entregassem armas e munições”. O General Sousa Dias, comandante operacional da revolta, afirmaria em tribunal que os civis que participaram na contenda se encontravam já armados e que tinham sido utilizados simplesmente no serviço auxiliar de ligações, meramente secundárias .
A Revolta em Lisboa
Em Lisboa os civis jogaram um papel determinante quer no desencadear, quer no desenrolar da revolta. No dia 3 de Fevereiro, viviam-se com expectativa os acontecimentos do Porto. Como seria de esperar, o Governo declarara o estado de sítio com suspensão das garantias e recolher obrigatório entre as 22 e as 6 horas. Os quartéis tinham sido postos de prevenção rigorosa e os pontos estratégicos da cidade ocupados pelas tropas leais. A população aglomerava-se no Rossio e Terreiro do Paço à procura de informações. O jornal “O Mundo”, órgão da Esquerda Democrática, que tinha saído em segunda edição sem prévio visto da censura, foi apreendido, presos os seus redactores e mandadas selar as instalações. O mesmo aconteceu com os jornais “O Rebate” e “A Informação”. A Polícia prendeu ainda um número indeterminado de suspeitos de estarem conjurados com a revolta.
Na madrugada de 4 de Fevereiro, os ferroviários do Sul-e-Sueste declararam uma greve geral, paralisando o tráfego ao Sul do Tejo, fazendo recolher todo o material circulante à estação de Casa Branca. O Governo respondeu com a ocupação militar das instalações ferroviárias e o encerramento do Sindicato. As manifestações de apoio à revolução no Porto faziam-se com grandes dificuldades e a descoordenação dos revolucionários era evidente. Nas hostes oposicionistas, recorda Emídio Santana, “há movimentação e intranquilidade, há entrevistas e acercamentos com o comité revolucionário, contra o qual todos conspiram”.
A partir de 5 de Fevereiro verificaram-se greves e agitação nos meios operários em solidariedade com os revoltosos do Porto, incitando os militares a sair para a rua. Um pouco por todo o país ocorrem actos semelhantes. Em Santarém são tirados os parafusos que fixam os carris da linha do comboio e cortadas as linhas telegráficas. Em Évora, de madrugada, civis que se fizeram transportar em três táxis, escalaram os muros da carreira de tiro e roubaram todas as armas ali existentes, enquanto os soldados da guarnição dormiam. Durante o dia, civis tentaram assaltar o Quartel General desta cidade, em vão. Numerosos populares concentrados na Praça do Geraldo foram dispersados por forças de cavalaria.
Na noite do dia 5 de Fevereiro a policia assaltou a sede do jornal “A Batalha”. Todos os que se encontravam no edifício, onde também funcionava a CGT, foram detidos e levados para a esquadra do Caminho Novo, donde seriam libertados logo no início da revolta em Lisboa.
A agitação popular também se intensificou no dia seguinte e, ao fim da tarde, um numeroso grupo de populares, gritando “morras à ditadura”, queimou no Rossio exemplares do jornal do Governo, “Portugal”. Forças da Polícia e cavalaria da GNR carregaram sobre os manifestantes retomando o controlo da praça e ruas adjacentes. Ao mesmo tempo, o Governo mandava encerrar todos os restaurantes, cafés e outros estabelecimentos públicos da cidade. Cerca da meia-noite, teve lugar o primeiro ensaio de início da revolta militar em Lisboa. Marinheiros que faziam a guarda ao Arsenal da Marinha tentaram apoderar-se dele, sem êxito.
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Agatão lança na Rua da Escola Politécnica com marinheiros, oficiais da G.N.R. e do exército, enquadrado por civis |
A reacção militar em Lisboa tardaria até às 9 horas da manhã do dia 7 de Fevereiro, quando 150 marinheiros, comandados pelo tenente Agatão Lança, saíram do quartel de Alcântara rumo à Rotunda, acompanhados por civis armados. A coluna foi engrossando com contingentes dos quartéis da GNR, cerca de 400 homens, incorporados no caminho, e tomaram posições no eixo São Pedro de Alcântara – Largo do Rato. Ali rebentaram as primeiras bombas arremessadas por civis contra as patrulhas militares fiéis ao Governo colocadas na zona (ver caixa com depoimento inédito de Américo Vicente). A essas horas, no Porto, a situação era de virtual derrota e já se negociava a rendição dos militares implicados, que viria a verificar-se, “sem condições”, na madrugada seguinte.
A proclamação dos revolucionários, distribuída profusamente pela cidade, sem euforia, mas escondendo a situação real da revolta, anunciava: “A Ditadura Militar está vencida”. Depois de identificar o inimigo com a “ínfima minoria do Exército que ocupa o Poder ao serviço da Alta Finança e das companhias estrangeiras”, deixa entrever que a reacção tardia e desesperada dos militares revolucionários de Lisboa ocorre por reflexo dos acontecimentos do Norte: “o sangue dos nossos irmãos do Porto tem de ser vingado”.
Revolucionários à porta do Arsenal da Marinha, na manhã de 7 de Fevereiro. (Fotógrafo não identificado. Arquivo Fotogáfico de Lisboa)
Entretanto, tinham já sido levantadas barricadas nos Largos do Rato e de São Mamede e nas embocaduras do Bairro Alto. No Jardim de São Pedro de Alcântara, onde se improvisou o quartel general dos insurrectos, foram colocadas metralhadoras. “Os estabelecimentos comerciais estavam já todos fechados (…) e a gente pressentia, como numa previsão colectiva de pavor, a grandeza da luta que ia travar-se”, pode ler-se no Diário de Notícias de 11 de Fevereiro, que, “em virtude dos acontecimentos”, não se publicou durante o conflito, tendo o mesmo sucedido com os demais jornais da cidade.
Ao mesmo tempo, os civis que acorriam às barricadas encontravam-se com a situação ilustrada pelas palavras de Emidio Santana: “com um companheiro de oficina e de ideias sigo para o Rato. Muitos civis esperam obter armas que faltam e não chegam”
Ao princípio da tarde começaram a ser alvejadas por granadas de artilharia, disparadas pelas peças das tropas fiéis à Ditadura situadas na Rotunda, as posições dos revoltosos no Jardim de São Pedro de Alcântara, a estação do Rossio, o Arsenal da Marinha, já na posse dos revoltosos, e dois navios de guerra ancorados no Tejo.
Algum tempo depois de se fazerem ouvir as peças de artilharia, um grupo de populares assaltou no Rossio as instalações do jornal “Portugal”, tendo destruído o material de imprensa e mobiliário, queimando todos os exemplares do jornal que ali havia. Dali, cada vez em maior número, dirigiram-se às instalações do “Correio da Noite”, depois às do “Correio da Manhã” e em seguida às das Juventudes monárquicas, donde lançaram pelas janelas todo o mobiliário e arquivos, pegando-lhes fogo em seguida.
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Destroços na baixa de Lisboa, junto às instalações do ''Correio Da Noite'' (Arquivo Fotográfico de Lisboa) |
Em vários pontos da cidade, Maria Pia, Arroios, Braço de Prata e Morais Soares houve recontros entre civis e militares. “Durante a noite prosseguiram os combates, sendo constante o tiroteio e matraquear das metralhadoras, ouvindo-se de quando em quando o troar dos canhões. Por outro lado, camionetas com forças fiéis ao Governo continuaram varrendo a tiro as ruas da Baixa, não deixando assomar ninguém às janelas” .
Ao romper da manhã do dia 8 foram posicionadas peças de artilharia no Torel, que passaram a alvejar impiedosamente o quartel general dos revoltosos, que teve de ser abandonado. Do Entroncamento, chegaram mais reforços às forças governamentais que pressionaram grupos de revoltosos espalhados pelos bairros compreendidos entre as avenidas da Liberdade e Almirante Reis, obrigando-os a abandonar as suas posições. As tentativas de civis e marinheiros para controlar a Escola Militar, a Penha de França e retomar o Torel, foram repelidas depois de violentos combates, obrigando à sua retirada. Alguns destes grupos tentaram juntar-se aos que se encontravam no Arsenal e na Rua da Escola Politécnica ou desapareceram sem rumo certo. A Baixa de Lisboa foi entretanto ocupada por tropas de infantaria.
Contingentes das forças fiéis à ditadura ocuparam posições na rua de São Bento, infiltraram-se no Bairro Alto e nas vizinhanças da Rua da Escola Politécnica. O cerco apertava-se. De noite combateu-se com violência perto da Rotunda e no Arsenal.
Na manhã do dia 9 de Fevereiro, os aviões, que no Porto apenas tinham feito reconhecimentos e distribuído jornais e propaganda, foram utilizados como arma ofensiva em Lisboa. As posições dos revoltosos na rua da Escola Politécnica, no Bairro Alto e no Arsenal da Marinha foram bombardeadas também pelo ar.
Cerca do meio-dia começa a ser afixado um edital do Governador Militar de Lisboa onde se faz saber, depois de confirmar o estado de sítio na cidade, que “é expressamente proibido, seja a quem for, assomar à janela” e “todo aquele que for encontrado com armas será fuzilado sem julgamento”.
O Arsenal foi objecto de novo bombardeamento aéreo ao início da tarde, permitindo a sua conquista. Parte das forças revoltosas retiraram debaixo de fogo, conseguindo passar de barco à outra margem do Tejo, enquanto os restantes civis e marinheiros lhes cobriam a retirada. Com a rua do Alecrim já tomada pelas forças governamentais, o cerco às posições dos revoltosos completar-se-ia com o avanço das forças fiéis ao Governo pela Calçada do Combro. Nas ruas transversais, pequenos núcleos de civis e revoltosos dificultaram o mais possível o avanço das tropas, fazendo fogo incessantemente. “O pânico no Bairro Alto era indescritível”, escreve um jornalista do Diário de Notícias.
Os revoltosos foram confinados ao eixo Jardim de São Pedro de Alcântara – Rato, com barricadas nas travessas adjacentes e combatentes posicionados no Jardim Botânico, onde ainda hoje se podem observar as marcas das balas nalgumas das árvores. Ficava assim delimitado o terreno onde os revolucionários resistiram até à rendição.
Cerca das seis horas, um carro com um lençol branco hasteado num pau de vassoura percorreu a Rua da Escola Politécnica. Nele, um dos oficiais revoltosos, ao passar pelas barricadas ali montadas, anunciava que iria ser dada a rendição, informava que já não havia munições e indicava aos civis que fugissem.
Às 7 horas da tarde, o coronel Mendes dos Reis telefonou ao estado-maior das forças fiéis ao Governo e anunciou a sua rendição: “não posso continuar a luta porque não tenho munições”. Informou a localização do ministro dos Estrangeiros e dos seus secretários, prisioneiros dos revoltosos desde o primeiro dia, recomendando que fosse ordenada para essa missão a saída de uma força da GNR do quartel do Carmo, que se mantivera neutral, avisando “que não encontrará como adversários senão poucos civis que eu receio que possam fazer quaisquer distúrbios”. Deu ainda a informação de que estava acompanhado pelo comandante Agatão Lança mais outros dois oficiais numa mercearia junto ao Largo do Rato, onde aguardariam o destino que entendessem dar-lhes. O seu destino seria a Penitenciária de Lisboa, aonde nos dias seguintes seriam concentrados centenas de militares e civis envolvidos na revolta.
Chegados a esta altura dos acontecimentos deixa de haver notícias nos jornais sobre o que se passou a seguir à rendição destes militares. Como desmobilizaram ou escaparam as centenas de marinheiros, guardas republicanos e civis cercados naquele perímetro, continua a ser uma incógnita. Um apontamento, apenas, refere que na manhã do dia seguinte ainda se ouviam tiros isolados no Bairro Alto e arredores. A voz popular e alguns autores continuam a dizer nos dias de hoje que “marinheiros e civis foram fuzilados junto ao chafariz do Largo do Rato depois de se terem rendido por falta de munições”, mas a historiografia oficial nada diz a este respeito. Nem confirma, nem desmente esta “maneira singelamente fascista de dissuadir a participação popular” .
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Destaque para o parágrafo da sexta página da edição do Diário de Notícias de 11 de Fevereiro de 1927 informando da entrada de 35 cadáveres não identificados no necrotério, pelo mistério que encerra: militares sem placa identificadora?... |
Em Lisboa, os combates, que cessaram no dia 10, causaram cerca de noventa mortos e mais de quatrocentos feridos. No Porto, os mortos foram mais de cem e cerca de quinhentos os feridos. Em Lisboa, o total dos militares revoltosos não teria superado os mil, enquanto revolucionários civis, na falta de mais armas, foram o triplo destes, sendo “a parte mais aguerrida nos combates de rua, no assalto a quartéis e na obtenção de armamento, dando à Revolução uma feição popular” .
Para muitos, esta tentativa de derrube da ditadura fracassou devido à descoordenação entre os dois polos revolucionários. Para Sarmento Pimentel, do Comité Revolucionário do Norte, a responsabilidade foi “dos conjurados de Lisboa, que não vieram logo para a rua, como estava combinado, e comprometeram, assim, irremediavelmente, o levantamento do Norte. Por culpa dos tímidos, dos pusilânimes, dos cobardes e daqueles que viram que a revolução não servia os seus interesses e, sendo republicanos, contrariaram o movimento. Arrependeram-se depois, mas já era tarde” . Referindo-se ao desfecho dos acontecimentos, manifestou: “Nós, os do Porto, chamámos àquele levante tardio de Lisboa, a ‘Revolução do remorso’. É claro que a ditadura, podendo bater os seus inimigos, primeiro um e, depois deste vencido, o outro, esmagou este retardatário impiedosamente. Deu-se até ao desporto de andar a caçar a tiro, nas ruas de Lisboa, os republicanos tresmalhados, como quem caça coelhos” .
A vitória militar traduzir-se-ia num claro reforço da Ditadura, que ficou com os movimentos livres para pôr em prática uma política repressiva até ali impensável. Antes de acabar o mês de Fevereiro, mais de mil implicados na revolta, entre militares e civis, foram deportados e largas centenas tiveram que se exilar. Os jornais que apoiaram o movimento foram imediatamente suspensos. Alguns sindicatos foram encerrados e a CGT foi dissolvida, passando a funcionar na clandestinidade.
Nos meses e anos seguintes a repressão aumentaria exponencialmente contra as organizações operárias e contra todos os que eram conhecidos pelas suas ideias inconformistas com o regime ditatorial, assistindo-se ao reforçar do Estado policial e ao apertar da censura à imprensa. As tentativas inssureccionais de lhe pôr termo por parte dos civis e militares “reviralhistas” sucederam-se até 1931. Todas fracassaram.
Reforçada nestas lutas e dispondo de forças armadas depuradas de elementos perturbadores, a Ditadura passou de Militar a Nacional. Chefiada por Salazar, apoiada pela Igreja Católica e contando com a apatia da esmagadora maioria do povo analfabeto e apolítico, embalou num percurso interrompido só quase meio século depois, quando o MFA (Movimento das Forças Armadas), um movimento conspirativo de novo tipo, só de militares, lhe pôs termo com o golpe de 25 de Abril de 1974. Realizavam assim o sonho do “reviralho”: restaurar o regime e a Constituição. Ao mesmo tempo que, involuntariamente, abriam as portas ao desencadear de um processo revolucionário realmente transformador na sociedade portuguesa, que uma parte significativa desses mesmos militares, desta vez organizados com civis enquadrados no espectro político que ia dos socialistas à extrema direita, se encarregaria de fechar, um ano e sete meses depois, com o golpe de 25 de Novembro.
OS MORTOS E OS FERIDOS
O Diário de Notícias de 11 de Fevereiro dedicava toda a sexta página às dezenas de mortos e centenas de feridos em Lisboa. Ilustrada com fotografias dos acontecimentos, esta página constitui um documento interessante, recheado de informações, indispensável para o estudo da história da revolta. Para além de identificar mortos e feridos, internados nos vários hospitais da cidade, da sua condição de militares ou civis, idade, profissão e residência, acrescenta, na maioria dos casos, o tipo de ferimento e o ponto da cidade onde se produziu. Os civis triplicam nesta lista os militares e surpreende o número de mulheres atingidas ou mortas, a maioria por estilhaços de granada, mas também a tiro numa percentagem surpreendente. Contém ainda curtos desenvolvimentos sobre algumas vítimas, como a do banqueiro Soto Mayor, ferido a tiro num olho em sua casa, ou da filha e da criada do ourives Bastos da rua da Prata, mortas pelo impacto de uma granada de artilharia, quando observavam os combates do 4º andar do edifício. Destaque para o parágrafo que informa da entrada de 35 cadáveres não identificados no Necrotério, pelo mistério que encerra: militares sem placa identificadora?…
DEPOIMENTO
Grupo de civis que actuou na insurreição no Porto.
Américo Vicente, sindicalista anarquista, membro da Juventude da CGT, um dos civis concentrados junto ao Quartel dos Marinheiros de Alcântara, que integraram a coluna comandada por Agatão Lança, relata, num depoimento inédito , filmado 60 anos depois dos acontecimentos, a progressão desta força. “(…) eu fazia parte dos grupos civis de preparação da revolução de Fevereiro (…) Viemos depois em direcção ao Largo do Rato já com a Guarda Republicana do quartel da Pampulha, que era comandada pelo Coronel Mendes dos Reis, [líder da Junta Revolucionária de Lisboa]. A primeira coisa que fizemos, é claro, já iamos preparados para a Revolução, íamos armados e tal, foi ir soltar à esquadra do Caminho Novo todo o pessoal de “A Batalha” que ali se encontrava preso. “A Batalha” tinha sido assaltada [pela Polícia] dias antes e tinham prendido todo o corpo redactorial e tipográfico. Dali, atravessámos aquelas ruas e quando chegámos ao Jardim do Patriarcal [actual Príncipe Real], houve o primeiro embate contra as forças fiéis ao Governo (…) que estavam na Rua da Escola Politécnica com as armas aperradas. A Marinha já tinha tomado o Jardim de São Pedro de Alcântara. E há um oficial que diz: ‘Há aí alguns artilheiros civis?… É preciso correr com estas vedetas todas que estão por esta rua fora…’ Uma série de civis ofereceram-se, foram pela rua da Escola Politécnica fora e amandaram com uns explosivos, limpando a rua toda. A rua da Escola é limpa e tomam a barricada no Largo do Rato. Este foi o primeiro embate com as forças do Governo. Aquela Revolução durou três dias ou dois dias e meio, andámos ali enganados quase dois dias, sacrificados, alguns morreram é claro, só quem viu aquilo é que pode dizer o que aquilo foi… Parecia que tinham andado ali com uma picareta a picar os prédios… Na área do Rato havia umas poucas de barricadas… Quando chegou ao terceiro dia já quase não havia munições, o último cunhete de balas que estava em depósito dentro da Escola Politécnica, onde há duas grandes esferas à entrada dos portões, aí é que era o depósito de material de guerra, fui eu levá-lo a uma barricada numa daquelas travessas (…) Isso foi uma grande falha, não digo que fosse a mais importante, mas contribuiu bastante para a Revolução perder aquele entusiasmo, aquele ânimo, porque não havia material. Então, pelas 5 ou 6 horas da tarde, apareceu um automóvel pela rua da Escola Politécnica com um pau de vassoura e um lençol branco a dizer para a gente fugir que iam dar a rendição. É claro que não havia munições. Os oficiais gritavam: ‘Estamos mal, temos que nos render”. Porque havia muitos civis que não queriam render-se. ‘A gente não se rende! A gente vai lutar! A gente vai dar o sangue, mas não nos rendemos!’ Os oficiais aconselhavam: ‘Vamos embora rapazes, já não há nada a fazer, para sofrer estamos cá nós…’ É claro que tivemos que nos render, cada um fugiu para onde pôde. Os oficiais do Comité Revolucionário já fizeram aquilo para os civis fugirem… Então, cada um tratou de fugir, como eu. Chegou a altura, tirei tudo o que tinha por cima de mim, toca a andar, lá consegui safar